Registos quase magnéticos sobre quase tudo, sem se dizer rigorosamente nada.
Nota: para todos aqueles que não comentem os posts, a tortura é serem obrigados a adquirir o livro "Desconstrutor de Neblinas", de Domingos Lobo, autografado pelo próprio.

sexta-feira, 13 de abril de 2007

BOLSO DE POESIA

José Carlos Ary dos Santos, Poeta de Abril

Conheci o Ary dias antes da publicação do seu “Liturgia do Sangue”. Ary tinha feito as últimas revisões e o livro sairia do prelo semanas depois. Nessa noite, uma dessas noites tristes e chuvosas da Lisboa de 1963, estivemos na Trindade a mordiscar cerveja, com a Natália Correia, o Diogo (irmão do Ary), o Vladimiro Franklin, o Dórdio Guimarães, e mais uns putos, como eu fascinados pela verve tumultuosa e o deslumbre de um talento sem freio, desse poeta desafiador de normas em pátria barricada de esquinas com ouvidos nas sombras e preconceitos lorpas. Lembro-me de termos passado pela Brasileira do Chiado e o Ary ter gritado para dentro do café “bichas de sacristia”, para provocar a ira dos pides que, enfastiados de vigília, fingiam reler o “Diário da Manhã” e “A Época”. Passámos na Sá da Costa a cumprimentar o Fernando Assis Pacheco, que perorava, com o ar mais desatento deste mundo, frente ao seu “Cuidar dos Vivos”, debruando o tempo até regressar à banca do nosso Diário de Lisboa.
Caramba! Todos mortos! A todos os acasos do andar pela vida tirou o tapete, deixando-os mergulhar em terra rasa muito antes do último round. Os deuses não perdoam aos poetas a palavra liberta e fecunda que estruma o nosso chão.
Desse grupo, ao tempo ainda sem palavras por dizer, resto eu. Isto, porque os anjos andam cegos e não me descobrem nestas veredas por onde ando a tentar desconstruir os signos, a acender, já sem ânimo, o fogo no lastro das palavras.
Nessa noite de 1963, Lisboa da modorra cinzenta e dos gritos fugazes, com guerra nas colónias e discursos do “botas” na televisão, dizíamos no Rossio, com os náufragos da noite por ouvintes espantados, o “Intróito”, o “In Memoriam”, “Ou Arcanjo ou Ladrão”: poemas? Claro, e belíssimos; hinos nossos seriam.
Depois, vieram os “Adereços, Endereços”, Aristóteles visita de casa de minha avó, “O Objecto”; há que dizer-se das coisas o somenos que elas são. Herança revisitada do humor mais sagaz da nossa língua, a morder a entretela do luso pasmo.
“Insofrimento In Sofrimento”, escrita madura, as raízes mais fundas de uma ternura a explodir em torrente lírica. “Fotos-Grafias”, retratos de deuses, companheiros nossos, gente da boémia, das letras, dos excessos, do sexo, das margens e da esturdia – da vida a trespassar os limites do corpo e da fala. “Resumo”, a assumir a poesia como arma de transformar o mundo, de abrir clareiras ao fechado entendimento de um povo sujeito a 50 anos de temores e silêncios prostrados. E, depois, esse grito maior do nosso contentamento: “As Portas que Abril Abriu”. E “O Sangue das Palavras”, o sarcasmo e a luta, a rebeldia, o desatino, a coragem. De novo uma pausa, a partitura maior de uma escrita sempre a deslumbrar-nos, “VIII Sonetos” de amor e reconhecimento/recolhimento, de lisura, de generosa dádiva.
Estamos ainda os dois no Rossio, a olhar a água chilra das fontes e da chuva. Eu, com dezassete anos tímidos e borbulhas parvas, tu, com muitos livros na barriga, prontos a parir, a partir pelo mundo, com o génio a arder no verbo rasante, na palavra demolidora ou serena, na garganta rouca de gritar as palavras urgentes, ou na suave melodia de um fado desta Lisboa nossa, a despertar: “É da terra sangrenta. Terra braço/terra encharcada em sangue e em suor/que o homem pouco a pouco passo a passo/tira a matéria-prima do amor”.
Até sempre, até breve companheiro. Camarada. Poeta maior de Abril. De Abril e Maio. De todo o tempo. Para sempre. Porque, como tu escreveste e nós sabemos “as entranhas da terra hão-de passar/o tempo da humana gestação/e parir como um rio a rebentar/o corpo imenso da Revolução”.

José

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