Registos quase magnéticos sobre quase tudo, sem se dizer rigorosamente nada.
Nota: para todos aqueles que não comentem os posts, a tortura é serem obrigados a adquirir o livro "Desconstrutor de Neblinas", de Domingos Lobo, autografado pelo próprio.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

MEMÓRIAS DE BOLSO

ABRIR AS PORTAS À VIDA E LEMBRAR JOSÉ CARLOS ARY
DOS SANTOS – PARA RASGAR O SILÊNCIO


Nem todas as limitações sentidas pelos criadores à difusão dos seus textos, dos seus filmes, do seu teatro – para nos limitarmos às artes que têm a palavra como modo privilegiado de transmissão de ideias, de emoções e de afectos (embora no cinema e em algum teatro contemporâneo a palavra possa ser apenas um meio subsidiário e não o veículo principal) – se abateram com a queda do fascismo. Se no período sequente à Revolução de Abril foi possível aos criadores divulgar as suas obras e se criaram mecanismos de abolição dos entraves censórios e, consequentemente, se desenvolveram meios de apoio à sua geral prática e difusão pública, após o golpe reaccionário de 25 de Novembro a burguesia, com o apoio de alguns agentes conservadores, reciclados democratas em Estado Novo, cuidaram de gerar as estratégias de cerco – não já ostensivamente censórias, com lápis azul e broncos coronéis que o caruncho e o medo haviam compulsivamente levado a desertar para uma estratégica reforma – de forma mais subtil mas não menos segregadora da criação literária e artística livre e de clara opção anticapitalista, ou de tentar silenciar as vozes que ousassem criticar a deriva neo-liberal, então já claramente esboçada.
Os bloqueios socioeconómicos e profissionais não se fizeram esperar com os media a serem invadidos pelo grande capital, numa lógica rapace de controlo da informação e das ideias e de permanente intoxicação da opinião pública, visando não apenas o lucro mas, sobretudo, o poder de difundir o pensamento único.
Ary foi uma das vozes que esses poderes tentaram silenciar. Eduardo Pitta, com o desassombro que lhe reconhecemos, num texto publicado no livro “Comenda de Fogo”, em 2001, punha a faca a jeito e cortava onde doía, revelando que por parte da crítica instalada existia o silêncio ensurdecedor – aquele que por completo obliterou o poeta das FOTOS-GRAFIAS, uma espécie de agentes ideológicos, prontos a devorar as vozes mais incómodas e irreverentes. Nada, portanto, que já não se soubesse e que o próprio poeta, ainda em vida, não sofresse com a mágoa/raiva que lhe era peculiar, embora, quando a isso instado, esboçasse aquele sorriso de criança rebelde, remetendo-nos para os versos do poema Queixa e Imprecações dum Condenado à Morte: Por existir me cegam,/Me estrangulam,/Me julgam,/Me condenam,/Me esfacelam./ Por me sonhar em vez de ser me insultam,/Por não dormir me culpam/E me dão o silêncio por carrasco/E a solidão por cela. (1)
As ideologias de direita nascem das contradições do sistema, ajustam-se pragmaticamente às circunstâncias históricas do momento, têm um sentido aglutinador e concentracionário, mesmo que fragmentado, principalmente quando a crise abala o seu território.
Lenine recusava a redução das ideologias a sistemas de ideias e Gramsci avançava que enquanto historicamente necessárias, as ideologias possuem uma validade que é psicológica, ou seja, organizam as massas, formam o terreno onde os homens se movem, onde adquirem consciência da sua condição. O neo-liberalismo serve-se da ideologia para criar o inconsciente cultural, que lhe permite o domínio e controlo dos imaginários que reflictam criticamente sobre o real, exercendo vigilância activa sobre os produtos culturais por forma a criar a necessidade psicológica da fuga ao sacrifício (ao real) para melhor estabelecer o seu domínio.
Foi, seguindo este método, que quiseram relegar o autor de O Sangue das Palavras, quando o escândalo do silêncio começava a desnudar o sujo da marosca, à qualidade “menor” de poeta de cantigas, como justificativo do cutelo segregador. Também por aí a coisa surtiu coxa. Estimáveis comparsas dessas luminárias, punham-se a jeito, sem disfarce, para que os cantores e cantadores da moda lhes trauteassem as medíocres letrinhas. A manobra, tresandando a elitismo pacóvio, não pegou. Melhor e mais eficaz, lhes pareceu relegar a voz incómoda de Ary dos Santos (como anteriormente haviam feito com Armindo Rodrigues, João José Cochofel, José Gomes Ferreira, Manuel da Fonseca, etc.) para o limbo dos ícones de Abril e ter a maçada de lhes limpar o pó uma vez por ano, sem alardes excessivos, até que o tempo passe e deles se esqueçam os
vindouros aos quais vão, subtilmente, sonegando a memória essencial.
A esta democracia, cada vez mais amarrada aos rumores de cavername do 28 de Maio, a palavra clara e firme de um poeta é-lhe insuportável, mesmo quando os seus versos transportam e afirmam os mais lídimos anseios do seu povo. A esta via sinuosa para o desastre, basta-lhe a birra suave e controlada de um poeta de voz cava e monocórdica que teima em afirmar, regianamente, que não vai por aí, mesmo que os ínvios caminhos escolhidos o reconduzam, como um Sísifo dos nossos dias, à praça onde paulatinamente os seus companheiros vão agrilhoando as canções e onde tentam fechar o vento que, pertinaz, vai transportando pelos ares o inconformado grito das vozes deste país.
José Carlos Ary dos Santos foi sempre um poeta de pé, de coragem, de afrontamento. De causas. Excessivo e claro, generoso até ao osso, sensível até ao desatar das lágrimas, um sátiro que usava com destreza e originalidade o verbo para despir na praça os hipócritas, os sabujos e deixar à mostra o cetim estiraçado da moral burguesa. Para desmontar e subverter, criar a desordem que lançasse por terra os valores anquilosados: A cabeça de vaca de minha tia refoga/nas lágrimas burguesas da família enlatada/cozinha-lhe a memória um viúvo de toga/descasca-lhe a cebola uma filha frustrada. (2)
Ary é, assim, como o afirmou Natália Correia “um dinamizador da matéria poética” mas, sobretudo, um exímio comunicador que sabia que as palavras têm peso, espessura, qualidades. Não quis nunca, mesmo nos primórdios, que os versos servissem para decorar a sala de visitas, ou entediar os serões da burguesia. Como Lorca, António Machado, Alberti, Neruda, ele sabia que a poesia era uma arma carregada de futuro (Gabriel Celaya), um caminho a desbravar, um instrumento mais para erguer a voz e cantar a justiça e a paz, para ajudar Abril a caminhar, acreditando que O que é preciso é termos confiança/se fizermos de Maio a nossa lança/isto vai meus amigos isto vai.
Por isso, por este verbo rasante e justo, sem concessões, José Carlos Ary não rejeitava o epíteto de “poeta popular”. Popular na mais ampla conexão etimológica; popular porque relacionado com o povo, com ele democraticamente solidário.
Poeta popular porque reconhecido pelas massas, sancionado pelo povo; popular como o foram os poetas do Cancioneiro, como Camões, Bocage, Guerra Junqueiro, João de Deus, Gomes Leal. Popular, porque o Povo lhe sabe as cantigas, as canta em coro: Os Putos; Lisboa Menina e Moça; O amarelo da carris; O Cauteleiro; O Fado do Campo Grande; Amêndoa Amarga; Meu amor, meu amor; Alfama; A Tourada; A Desfolhada; A Cidade e mais de seiscentas outras que mudaram radicalmente o modo de escrever os versos das cantigas, que transformaram o panorama da nossa música ligeira, ainda no limbo do nacional cançonetismo. Ao publicar (1975) uma narrativa em verso rimado intitulada As Portas que Abril Abriu, Ary dos Santos assume-se, isto é, interdita-se pela poética popular (nos seus traços exteriores) e pelo comprometimento na sua dimensão didáctica. (3)
Mas, igualmente, o poeta do verso intempestivo, ardente, onde perpassa uma matriz pré-surrealizante (Adereços, Endereços), e uma voz que mistura um Genêt carnal e físico, e o excessivo clamor de Rimbaud (A Liturgia do Sangue). É com Adereços, Endereços, que Ary afirma, no contexto das vozes reveladas nos anos 1960 e na poesia portuguesa contemporânea, a sua voz singular, a sua originalidade sintáctica, que disseca a modernidade, mas que a um tempo o afasta formalmente, pelo torrencial estilístico e inconformado rebelde dessa fala, de alguns poetas da Poesia 61, muito mais orgânicos e academizantes, embora lhe possamos assacar traços de familiaridade com o sarcasmo de Armando Silva Carvalho e no nebuloso surreal de Fernando Grade. De resto, Ary é um dos poetas presentes na antologia Poesia 71, organizada por Fiama Hasse Pais Brandão e Egito Gonçalves, com 2 retratos dedicados a Guerra Junqueiro e Camões, retirados do livro Fotos-Grafias, que o poeta havia publicado em 1970.
Independentemente de procurarmos saber que espaço ocupará a arte poética de Ary dos Santos na história da Literatura Portuguesa (o tempo se encarregará de separar trigo e joio), o poeta de VIII SONETOS (atenção ao magnífico estudo de Manuel Gusmão que acompanha a 1ª. edição deste livro) será sempre para os homens justos desta terra, um dos mais raros e fecundos cultores da palavra poética da segunda metade do século XX português. Frontal sempre, e sagaz e inquieto, construindo o poema com a textura precisa, moldável, com um ritmo substantivo e exacto para caber no poderoso fluxo da sua voz, essa voz que enche de colorações inusitadas, modelando as palavras e transfigurando-as, transmitindo-lhes reverberações que a leitura corrente, por mais atenta, não se atreve a descortinar – palavras que na sua voz ganham um fulgor novo e nos parecem quase inverosímeis de tão certeiras e urgentes. A voz, o poder épico dessa voz, arrasta consigo o âmago mais secreto das palavras, cobre-as de sentido. De sentidos: no sarcasmo, na sátira, na denúncia, na emotividade. Ainda hoje não conseguimos ler As Portas que Abril Abriu sem lhe seguirmos o ritmo, a força, o exuberante clangor da forma como Ary diz os versos finais: Agora, ninguém mais cerra/as portas que Abril abriu.
Mesmo nesse rumor fundo do silêncio detectado por Eduardo Pitta, as palavras de José Carlos Ary dos Santos continuarão a estar vivas, a ressoar como um alerta aos nossos ouvidos, a caminhar ao nosso lado. Porque, por muito que tentem calar, um poeta Nunca canta sozinho, dado que “É por dentro de um homem que se ouve/o tom mais alto que tiver a vida/a glória de cantar que tudo move/ a força de viver enraivecida.” (4)



José



(1) – In “A Liturgia do Sangue” – Obra Poética – Ed. Avante
(2) – In “Insofrimento” - Obra Poética – Ed. Avante
(3) – in “10 Anos de Poesia em Portugal” de Manuel Frias Martins – Ed. Caminho
(4) – In “O Sangue das Palavras” – Obra Poética – Ed- Avante

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

O Nosso País é uma Fantochada (de bolso)


Medina Carreira no programa "Nós Por Cá", da SIC, "rasga" o governo e todas as suas opções de propaganda.

É só clicar aqui e ver.