Registos quase magnéticos sobre quase tudo, sem se dizer rigorosamente nada.
Nota: para todos aqueles que não comentem os posts, a tortura é serem obrigados a adquirir o livro "Desconstrutor de Neblinas", de Domingos Lobo, autografado pelo próprio.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

MERDA NO BOLSO

A Sic mascarou-se de Tvi

Quem não se lembra do Perdoa-me, do All You Need is Love, dos Acorrentados, do Bar da TV e de tantos outros “brindes” que a Sic ao longo da sua existência nos tem oferecido em canal aberto? Mas todos estes «momentos altos» da televisão portuguesa juntos com o famoso Big Brother, não conseguem atingir o «patamar cultural» da mais recente estreia da Sic, o Momento da Verdade. É a prova de que o impossível está sempre a acontecer e o pior está sempre à espreita, acabando mesmo, infelizmente, por chegar. Resta perguntar como é que o Nuno Santos se lembrou duma destas?

O novo reality show da Sic(k) resume-se a enxovalhar o concorrente a troco de dinheiro. E há quem se preste a isto! A ideia é nunca mentir às perguntas colocadas para ganhar até 250 mil euros. As respostas são comparadas com outras feitas anteriormente num teste de polígrafo e se até à pergunta 21 o concorrente disser apenas a verdade e nada mais que a verdade, sai vencedor, mas de vida desfeita.
Na estreia, o novo “herói nacional” foi um cabo do exército que confessou logo na primeira pergunta que já tinha ido embriagado para o quartel. Mas a chacina televisiva continua. No estúdio estão também familiares do “concorrente” que, no meu entender, têm a espinhosa missão de servir de entretenimento adicional ao público da Sic, devido ao ar incrédulo que vão fazendo de cada vez que o “concorrente” responde às perguntas mais íntimas. E há quem se preste a isto!
As perguntas sucedem-se e os euros aumentam, isto se a verdade vier sempre ao de cima. Ao mesmo tempo, a auto-estima do “concorrente” e dos seus familiares vai batendo cada vez mais fundo, até que se esvai... Mas não há vítimas a lamentar, pois há quem se preste a isto! Gente que não percebeu a triste figura que ia fazer, só para aparecer na televisão e ganhar meia dúzia de euros, dinheiro que nunca compensará o ridículo e a invasão da privacidade de cada um.
Por dinheiro, quem se senta na cadeira em frente de Teresa Guilherme diz para a audiência da Sic; que saliva em frente ao televisor à espera de sangue; aquilo que nunca foi capaz de confessar a sós à esposa/marido, família e amigos.
E a televisão portuguesa continua a ser isto. Feita para o público que a vê, que somos nós. Resta descobrir de quem é a culpa.


Pedro

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

OLÍMPICOS DE BOLSO

Mal-estar olímpico

Uma tremenda confusão. Assim se pode descrever a delegação olímpica portuguesa que esteve presente nos Jogos Olímpicos de Pequim. Em todo o caso, sabemos muito bem as dificuldades que os nossos atletas têm, num país que só passa cavaco ao futebol. Aliado a essas dificuldades acresce ainda o presidente do Comité Olímpico Português (COP), Vicente de Moura. Quando tudo parecia perdido, aproveitou para dizer que se ia embora. Ainda bem, pois já lá anda há tempo a mais. Mas o mais surpreendente foi ter voltado com a palavra atrás logo a seguir ao Nélson Évora ter conquistado uma Medalha de Ouro. Muito mau!

Durante mais de uma semana, Portugal lamentou-se dos maus resultados olímpicos. Depois, Vanessa Fernandes conseguiu a Prata no Triatlo e, três dias depois, Nélson Évora conquistou o Ouro no Triplo Salto. Nesse momento Portugal passou a ter o melhor resultado de sempre nuns Jogos Olímpicos. Face a isto, a demissão do presidente do COP, as declarações de vários comentadores e os títulos de vários jornais deixaram de fazer sentido.
Se Nélson Évora não tivesse ganho o Ouro dedicaríamos centenas de horas a discutir o que está mal. Será que existe neste país lucidez suficiente para fazer o mesmo, mesmo depois das duas grandes prestações dos atletas do Benfica? É que apesar do Ouro e da Prata os problemas subsistem exactamente iguais.
Portugal até tem boas infra-estruturas desportivas e dá condições de competição superiores a uma grande parte dos países de igual dimensão, para não falar em apoios (apesar de insuficientes) aos atletas. Então o que falhou? A atitude? Decerto!
O que fez com que a participação portuguesa nos Jogos olímpicos fosse inadmissível não foram as derrotas, porque a essas todos os atletas estão sujeitos. O grande problema foi a atitude, ou a falta dela, uma tremenda falta de concentração e, por vezes, alguma falta de educação, tudo isto fruto da gritante falta de liderança do Comité Olímpico Português.
É necessário que, quem de direito, entenda que o desporto em Portugal não pode ser só futebol. É preciso trabalhar neste sentido e fazer os possíveis para que o nosso país esteja entre os melhores e sempre bem representado. Há muitos campeões em Portugal a lutar todos os dias para isso.

Pedro

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

MITOS DE BOLSO

A SAGRAÇÃO DA PRIMAVERA, DE AURÉLIO LOPES

Pediu-me o Garrido que viesse hoje aqui perorar sobre o teu livro "A Sagração da Primavera". O certo é que não me apetece: estou em dia não, em crise de identidade, aziago à brava e não me apetece falar de primaveras quando o cinza invade tudo, semáforos, jardins, ruelas de fado vadio e penadas almas. O frio cacimbeiro deste Dezembro, entra-me pelas frechas do bestunto e o coitado, assim exposto às intempéries, às maleitas do solstício de Inverno, põe-se com rebeldias, vai-se ao tapete e nega-se à reflexão. Estou hoje como aquela personagem de uma peça do Tchekov a quem pediram para falar dos malefícios do tabaco e se pôs a falar da vidinha minguada e desinteressante, carregada de angústias existenciais sem o Sartre ainda saber da poda e ir lá pedir-lhe direitos de autor: nem o Pessoa, que andava por essas margens, mas se acomodava a beber aguardente e a construir duplos de si mesmo. E, depois, em Lisboa, minha pátria das memórias infantes a esboroar-se no desencanto de uma dívida grossa, não me apetece tecer loas ao Povo, aos seus ancestrais hábitos e costumes. Estou como a Rainha do Círculo de Giz Caucasiano, do Brecht, que gostava muito do Povo "mas o cheiro"…
Os teus livros, Aurélio, sobressaltam-nos, falam-nos das pedras, de bosta nos lajedos, casas de xisto e adobe, de bois mansos, de crenças e mezinhas, dos ciclos de fertilidade, de sementeiras e colheitas: estou noutra, meu. Os espanhóis, os holandeses e franceses que mourejem para nos encher as bancas dos supermercados, o resto são desvarios de antropólogo e nisso, por deformação profissional, não meto prego nem estopa. Quero-me manso, com ressaca suave que seja sequer a do Vasco Pulido Valente ao meio-dia, e para histórias de avoengos temos o Sousa Tavares que produz tijolos literários à velocidade do som e dá, ao que consta, de comer a muitos famintos portugueses desempregados e na penúria. Deixa-te de tretas Aurélio, essa das Maias não pega, a única Maya fértil que conheço é cartomante e serve-nos o ego à mesa com destino, dores de corno, sorte ao jogo e aos amores ilícitos, chave certa no Euromilhões e vem na "Pública" aos domingos de recato e modorra; é quanto basta para se ser feliz. Para o meu lado revolucionário e épico guardo as imagens do Maio/68; Paris a arder, o Povo aos gritos libertários com os poemas de Mao a tiracolo (não existem revoluções felizes, como sabes) e palavras de ordem descabeladas e urgentes escritas nas paredes da Sorbonne. E lembro outros Maios, estes primeiros, vividos no Rossio, fugindo ao trote das bestas da GNR - bestas tout court, é evidente. Está no currículo e serve para exibir nestas enrascadas.
Agora, falar das tuas Maias, é que não: terreno em que não me atrevo, sou doutro departamento; das claridades solares do Eugénio de Andrade, do estilo levado ao ínfimo do prodígio da língua do Herberto, do Ramos Rosa - deixo-te as cantigas de roda, os cantos e as danças que enchem os ciclos da vida, todos o sabemos, origens nossas é evidente, saberes e lúdico misturados, devoções e poderes com o espírito santo a velar por nós pecadores e eu, como o Mário Soares, agnóstico e republicano, a ler-te os calhamaços, bodo aos pobres, festas em louvor de crenças avoengas e tolhedoras da modernidade tecnocrática e consumista, diria o nosso primeiro se a tanto se atrevesse na liça tecnológica que nos vai desgastando o corpito e, pior, a dissoluta alma que penada anda. Nem com os teus caretos, face ao caos que antevemos, lá vamos, caro Aurélio. Nem com trinta dotes, concinados a morgado, por muito célebre que seja, do Casal do Ventoso. O Casal Ventoso que sabemos e nos dói à brava, traz o cavalo espetado na veia até ao estrebucho e já não vai lá com modinhas de roda. Estamos, neste istmo miserável da Europa, como os teus "judas": suspensos de cordas bamboleantes e moídos de dívidas e de défice.
Para antropologias bastam-me os romances do Aquilino. Não vou por aí, meu caro, como escrevia o Régio. Nessa teia não me envolvo, é chão demais para inseguros pés. Imagino-te, a penates, gravador a tiracolo, máquina fotográfica e livralhada congénere a calcorrear montes e vales, a ouvir velhas desdentadas cantando em agudo eslavo cantigas de crenças e de trabalho, que paciência de Job, meu caro, ou de chinês que está mais à mão e é mais em conta, armado em Giacometti, mas com estilo, convenhamos, no Covão do Coelho, na aldeia da Glória, nas faldas esquecidas de Trás-os-Montes, a broa e jeropiga, a perderes-te em solstícios e brumas, chás pró quebranto e mau-olhado, padre Fontes telúrico entre bruxas e lobisomens. Não dá com o nosso tempo, meu caro: somos da Baixa-Chiado, de torradinhas na Bénard, café na Brasileira, má-língua na Versailles, compras nas mercearias de engenheiro Belmiro e, para as folgas do intelecto, temos as Fnac que nos cheiram a Sena e Champ's Elisée. Os teus livros têm demasiado povo dentro, demasiado mundo nosso que queremos esquecer, como o Pessoa também queria. Mas tu não deixas, teimas em invadir o nosso espaço com os ritos ancestrais da subversão, com a tradição portuguesa, coisa em desuso como sabemos: a ASAE anda aí a fechar-nos a tradição por todas as esquinas, para que a nossa tripa não rebente de sebo, dobrada com feijão branco em tascas manhosas, gravanços com bacalhau, repolhuda com mão de vaca e ginjinha com elas. Enterramos as tradições como enterramos o Entrudo: sem lágrimas e sem revolta. Falta-nos o O'Neill para pôr isto a jeito e enterrado nos sábados do nosso descontentamento e do nosso caos colectivo e nem uma gaivota cega voa nos deserdados e esquecidos céus de Lisboa. Qual Primavera, meu velho, qual Sagração. A única que sabemos é a do Stravinsky, sentadinhos nas poltronas da Gulbenkian, ou do CCB, com o olhar vagamente enfastiado, tossindo à brava para disfarçar o desconforto, à procura de perceber aquilo, aquelas dissonâncias que levaram os broncos parisienses, em 1913, à pateada furiosa e agora nos amansam de reverência e prostração conformada, e as danças a que vamos são as da Pina Bausch, embora não percebamos patavina da simbologia implícita na desordem dos movimentos. Mais fácil ao nosso olhar vadio, porque nos rói no sangue, as danças do teu Rancho de Covão do Coelho, com seus pressupostos identitários, com o cântico da terra à ilharga, mas não dá status nem o terreiro serve para exibir o figurino. Às tuas metáforas do simbólico, do sagrado e do lúdico, contraponho a imaginação regressiva das minhas angústias púberes, de outros rios e gentes e queria ver-te, fatinho de caqui colonial, em busca de solstícios em "terra onde não há Primavera nem Outono, é tudo um sol em brasa", como escreveu o Carlos Tê, entrando em musseques, nas casas de zinco do bairro Samba, a falar quimbundo com as pretas, quimbundo aprendido nos livros do Luandino Vieira que só ele e o Zeferino Coelho entendem, e a quitandeira da esquina, ou no pretuguês do Mia Couto, e extraíres da rezinga crioula cantigas de louvor e fertilidade. Dessas andanças te safaste, por um triz; por lá andaram os da minha geração com o bornal à ilharga, forçados a inventar outros modos de sobreviver, face ao caos que para nós inventaram.
Do teu mundo, dessa magia que anda à solta em milhares de páginas dos teus livros, sei apenas dos meus tempos de férias nas beiras do botas, ali ao rés do Dão, região demarcada de ditadores pacóvios, vinho e pão de milho: regressava de lá com a boca carregada de esses beatos e os putos da Escola do Arco do Cego rebolavam-se de gozo. Sei das minhas passeatas pela Serra de Arada, entre aldeias abandonadas, uma das quais com ressonâncias bárbaras, Drave. Os homens haviam fugido a salto para França e só mulheres loucas restavam no meio do casario de xisto e sombras. Por lá ainda existem resquícios de altares pagãos, rusticidades urdidas no xisto e inscrições em lápides dos mortos eternos:"Que eu veja uma nova Terra e um novo Céu". Do fundo do vale ouvia-se o desvario dos gritos de mulheres alucinadas, misturados com o tinir dos chocalhos. Não eram gritos de aflição nem de chamamento, apenas gritos "Uuuuuuuhh!Uuuuuuuhh!. De repente, vinda do nada, uma mulher sozinha, que devia ter mais de 60 anos e os meus medos refluindo aos pés. Pensei, assustado, que fosse ela que gritava, mas não era. Perguntei-lhe que gritos eram aqueles e ela respondeu-me com a maior das naturalidades: "É uma pastora, está a gritar para manter os lobos afastados do seu rebanho". Agora, neste país, por muito que gritemos, os lobos não nos largam: ferram-no o dente até ao tutano – é a vida, como dizia o da Opus Dei.
Mundos nossos, Aurélio, que tu abarcas como poucos para tentares manter viva esta ideia perene de que o povo constrói a sua identidade a partir do seu mais fundo chão. Mas nós, nesta urgência suicida de escreviver, vamos à vidinha e, desapossados das ferramentas essenciais, tropeçamos na montra da nossa ignorância e vamos definhando sem honra nem glória.
A Snu Abecassis dizia, ou alguém por ela, que nós só sairíamos do retábulo do nosso século XVI, quando a Europa nos entrasse casa dentro. A Snu vinha da Europa loira e liofilizada, onde não se cospe no chão nem os homens apertam, de cinco em cinco minutos, as partes, receosos de que a virilidade se ausente para outras paragens; onde não há cantos de trabalho, nem procissões, nem bodo aos pobres, nem crenças no Espírito Santo e na Redenção. Pois é, a Europa está aí já, em força, e nós continuamos calaceiros, medrosos do futuro e Chico-espertos. Não saímos do retábulo fadista, desgraçado e nevoento do nosso século XVI. E a culpa é tua que teimas em atirar-nos à cara com a carga ancestral e luminosa das nossas raízes e nós, canhestros, não sabemos pegar nessa bagagem cultural única e intransmissível, para nos afirmarmos como Povo singular, engenhoso, orgulhoso e nobre. Tardamos, meu amigo. Tardamos.É verdade, não se esqueçam que o tabaco mata.


José