Registos quase magnéticos sobre quase tudo, sem se dizer rigorosamente nada.
Nota: para todos aqueles que não comentem os posts, a tortura é serem obrigados a adquirir o livro "Desconstrutor de Neblinas", de Domingos Lobo, autografado pelo próprio.

terça-feira, 14 de abril de 2009

O BOLSO DE DOMINGOS LOBO


OUTROS MODOS DE CUMPRIR O SILÊNCIO
“O ROMPER DAS ONDAS”, de Rui Herbon


É provável que o poema de Sophia “Gritava Contra o Silêncio” diga mais deste novo romance de Rui Herbon, “O Romper das Ondas” (Prémio de Ficção de Almada/2008) do que as mais lúcidas lucubrações críticas: “Gritava como se estivesse só no mundo/como se tivesse ultrapassado/toda a companhia e toda a razão/e tivesse encontrado a pura solidão./Gritava contra as paredes, contra as pedras,/contra a sombra da noite.
Erguia a sua voz como se a arrancasse do chão,/como se o seu desespero e a sua dor/brotassem do próprio chão que a suportava./Erguia a sua voz como se quisesse atingir com ela/os confins do universo e aí,/tocar alguém, acordar alguém, obrigar alguém a responder./Gritava contra o silêncio.
A grande poesia explica, explica-nos, da maneira mais profunda; vai-nos às entranhas do ser em sua linguagem de signos: deixa-nos num êxtase de perplexidade, o interior do espelho que teimamos ver e nos está vedado; a poesia convoca-nos para os escombros do ser, para o enigmático, para os nossos mais escusos labirintos. É assim este livro de Rui Herbon, O Romper das Ondas.
Este livro começa por ser um corpo estranho no descolorido árido da actual ficção portuguesa. É um objecto lapidado até ao osso, um verbo límpido e seguro; a metáfora inesperada e sempre inventiva; a profunda ascese das palavras em seu inabitual rumor.
Tal como já acontecia no livro anterior Os Girassóis, igualmente este O Romper das Ondas é incómodo porque penetra, indelével, essa pele, esse cerco da nossa mais extensa e inominável solidão – a inquietação existencial, a impossibilidade de redenção (no sentido exódico), a incomunicabilidade como condição de absoluto.
Um texto moderno, assertivo porque se recusa à exibição; contemporâneo porque perplexo perante o seu tempo e a racional sensibilidade que o enforma. Exigente, porque arrisca, é insubmisso e vai contra a corrente; experimenta sem claudicar. Há neste romance uma voz grave, imperativa, feita de múltiplos diálogos, de um imaginário que toca Nick Cave e se sublima numa poética do ser, num hermetismo deslumbrado a lembrar Rui Nunes. Um livro que é um caso em sua exigente singularidade.
As estórias que O Romper das Ondas vai introduzindo na narrativa, proporcionais às entradas em cena das vozes (é um romance feito de vozes e de narradores, de onde os personagens estão ausentes ou serão aquilo que leitor inventar a partir de traços onde a subjectividade impera) que a preenchem, estão fora dos nossos referentes habituais e emotivos. A ambiguidade que este romance encena de forma magistral, elabora uma ficção alicerçada em referentes decadentistas, próximos de Bret Easton Ellis – mas sem a gratuitidade violenta deste, e o interiorismo avassalador e apocalíptico de William Burroughs.
Em O Romper das Ondas, as relações dos amantes são ecos de uma voz que se escoa e perde na voragem dos rumores íntimos, nesse esgotar dos sentidos: um acto espúrio. O romantismo, os resquícios que possam perdurar nos imaginários comportamentais hodiernos, está morto e enterrado. O amor é uma inutilidade, um simulacro, uma vibração de passagem – tão absurdo como a vida. Um abcesso, uma excrescência, uma etapa que se extingue vorazmente. Nesse amor, mesmo na abjecção, não há tragédia, mesmo quando os amantes encenam o suicídio – um acto de recusa, portanto.
A escrita de Rui Herbon é uma escrita feita de recusas: do fácil, do hiperbólico, do sonso ronronar barroco com que comparsas seus enfeitam o travejamento fabular. Rui Herbon apela a uma activa e permanente cumplicidade do leitor, não busca o olhar complacente de quem o lê, daí a provocação permanente, o jogo de quem tem os trunfos e os revela e oculta em permanente mutação. Uma escrita dentro da escrita, o seu abstracto e inquestionável percurso, eis o fulcro pelo qual se espraia o prosaísmo de Herbon. Este romance é um discurso “que fala por si”, ou seja, é o que quer dizer e o que esconde, um jogo de sombras em constante reverberação: o romance como representação.
O autor arrisca, confronta-se e reinventa-se permanentemente nesse frágil e orgânico corpo; rompe, com um sarcasmo acutilante e dúctil, com a modorra bem-pensante e bem-comportada que anda por aí a esponjar-se no lodo de uma literatura que finge uma existência que não é a sua, mesmo considerando a fatuidade que toda a obra de arte implica.
Este romance fala-nos da estranheza do vivido, de um compulsivo regresso aos campos escuros da memória e subjectivisa essa complexidade formal no sentido pessoano de “ontem/hoje”, utilizando a frase elíptica, a metáfora continuada (como acontece com Álvaro de Campos), a sinestesia que acompanha as falas e a narrativa, a forma modelar com que o romance percorre o seu corpus semântico para envolver um léxico ascético, maduro nas reverberações da fala, nos conflitos íntimos, no decadentismo que a enforma.
O Romper das Ondas é um romance que se “dissolve como um sonho ao romper do dia”, para utilizar uma frase de Óscar Lopes. Mas que, dissolvendo-se, permanece na angústia que transporta, na inquietação que suscita. É um romance solipsista, de estados de alma, com abúlicos e obsessivos momentos de descontinuidade, atravessados por uma poética despida, incisiva mas consciente da sua efemeridade. Há neste romance uma “consciência da consciência” como encontramos no Diário Íntimo de Henri-Fréderic Amiel, um radicalismo perceptivo de raiz bergsoneana.
O paradoxo existencial acontece em fragmentos de consciência, dir-se-ia de uma supralucidez que a narradora/personagem conceptualmente contém – mesmo quando a loucura parece marginar esta descida aos infernos do ser. De resto, é esta lucidez transversal que estrutura discursivamente o romance, que se vai adensando na 3ª. Parte, na qual o autor tenta deixar pista que componham o puzzle indistinto e dificilmente percepcionável pelo leitor comum. Desde Rui Nunes que o romance português não se aventurava por estas águas profundas, não arriscava um tão absorvente léxico para comunicar o incomunicável. Um romance que percorre a autoconsciência como sinal de continua perturbação, uma razão inescrutável na personagem principal deste romance que a faz deambular, psiquicamente, por unívocos universos; a inquietação, que é do domínio do consciente, em permanente interrogação; a absurda subjectividade do ser de Heidegger: o vazio, o nada. As perturbações do ser que encontramos no Livro do Desassossego de Bernardo Soares e, anteriormente, em Raul Brandão. “Antes, sabendo, ser nada, que ignorando: nada dentro de nada”, Ricardo Reis.
As sensações que a narrativa de Rui Herbon exprime (ou escamoteia) são de ordem subjectiva como em Alberto Caeiro, são reacções opositivas da sensibilidade. A protagonista sente de forma descontínua e por imposição abstratizante do narrador(a). Desse modo, o autor propõe-nos uma aventura sensorial, ao modo epigramático de Maria Gabriela Llansol, pelo interior sensitivo da personagem. E é essa viagem que é sedutora pelo inesperado, pela amálgama de sentidos que propõe. Daí esta viagem de interiores (pela casa, pela memória, pelas paixões, pelos companheiros de jornada; os que morreram (o ex-seminarista?); os que se perderam pelos caminhos da ficção – da vida?).
Esta escrita é, na sua singularidade, um jogo de aparências, de simulacros – a reinvenção permanente dos labirintos do absurdo no qual é difícil desvendar os códigos, mesmo quando nos aproximamos da luz. Daí o olhar, as várias derivas em que se inscreve, ser o mais palpável desta narrativa, o seu mais seguro chão. Mas um olhar que se nega a ver o pormenor, a descrevê-lo; apenas plana sobre os seres, as coisas, ou poucos lugares que nomeia: Nova Yorque, Paris, Rio de Janeiro, Elisa, Leonor, Butch – embora haja, para cada um, uma estória breve, quase sempre de recorte kafkeano ou herdada de Camus (de quem o autor nomeia uma passagem de O Estrangeiro). Assim, este olhar é um olhar sintético, loquaz, fenemenológico, afastando-se da lógica sincrética da narração comum: dir-se-ia entre o introspectivo de Rui Nunes e o abstratizante poético de Rodrigo Guedes de Carvalho – sem a fragmentária metástase de António Lobo Antunes.
Este jogo cromo-sintético radica num espaço interiorizado até à obsessão (a cama como espaço de desespero, de êxtase, de abandono – também do erotismo, do reencontro com um corpo que a protagonista procura e entra depurado pelos espelhos). O acto de ver é, assim, um acto inconsequente porque fechado em si: o olhar é um contínuo perceptível do real intraduzível, esse espaço entre “a imaginação e a nossa actividade intelectual”(1), de uma omnipresente sensação de vazio: nada é nada e a linguagem só produz novas formas de incomunicabilidade – a essência está algures, não é percepcionável.
Este modo existencial da protagonista – ou do narrador que denuncia esta íntima relação do corpo como um mundo onde todas as sensações coabitam, poderia caber inteiro nestes versos de Alberto Caeiro: “Fecho os olhos e a terra dura sobre que me deito/Tem uma realidade tão real que até as minhas costas a sentem./Não preciso de raciocínio onde tenho espáduas”. E esta paradoxal visão da vida e da sua ficção que O Romper das Ondas inscreve está ainda presente nestes versos de Caeiro: “Eu vejo a ausência de significação em todas as cousas”.
Há uma ascese elíptica neste modo de narrar que nos estremece, mesmo quando o hermetismo fragmentário desta fala torna, por vezes, intraduzível a substância – é a forma que prevalece e essa voz unívoca é, em si, um valor de sedução e apego do leitor.
Não já a realidade que de todos os lados assola o personagem de Os Girassóis, em O Romper das Ondas o real é extrínseco à narrativa, vive marginal a ela, fechada num tempo irrecuperável que se perdeu algures. Como para Caeiro, neste romance de Rui Herbon, “sentir é distrair-se” da vida, do seu húmus elementar, dessa seiva que alimenta os sentidos mas onde, paradoxalmente, nos perdemos.
As hipóstases que este romance suscita conduzem-nos à reflexão, são um desafio à nossa capacidade de entrar no jogo, de perceber que esse universo existe apenas na factualidade ficcional e que a realidade se esparsa dentro destes muros. O desconstrucionismo de Derrida (e de De Man) fala desta abordagem dos conflitos inorgânicos, da sua inocuidade representativa.A escrita de Rui Herbon aproxima-se destas sínteses cognitivas. Ou seja, este romance inscreve-se nas definições avançadas por Miguel Real no livro Geração de 90 – Romance e Sociedade no Portugal Contemporâneo: “ alia o objectivismo mais chão ao subjectivismo mais delirante”. Um texto onde se cruzam as linhas mais intensas da narrativa contemporânea: realismo, subjectivismo e desconstrucionismo.
Ao driblar as linhas de fuga, o romance O Romper das Ondas, inaugura um novo paradigma: não será mais possível falar do amor, das pulsões interiores, sem uma ruptura com a linguagem: há uma linguagem que inaugura um modo de dizer a solidão hodierna, os modos de dizer o silêncio e a incomunicabilidade, uma forma outra de no-lo dizer, de gritar contra o silêncio.

(1) – Fernando Guimarães, A Poesia Portuguesa Contemporânea – Edições Quasi

DOMINGOS