Registos quase magnéticos sobre quase tudo, sem se dizer rigorosamente nada.
Nota: para todos aqueles que não comentem os posts, a tortura é serem obrigados a adquirir o livro "Desconstrutor de Neblinas", de Domingos Lobo, autografado pelo próprio.

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

BOLSO NOTÁVEL

"Exaltação do Prazer" - a minha singela apreciação do novo livro do meu amigo Domingos Lobo

A apresentação desta obra, de permanente busca do mais diatribe, em que se pretende apreender o facto da comunicação na sua escrituralidade, oralidade e clandestinidade remontada ao Século XVIII. O que posso acrescentar de significativo ao livro a que o autor me quer associar? Talvez muito pouco.
Antes de mais, tenho que dizer do muito apreço que me merecem os livros do José Domingos Lobo. Em “Os Navios Negreiros não Sobem o Cuando”, habituou-nos a um rigor descritivo e de análise factual que importa enaltecer.
Produzem-se hoje muitos livros, de aceitação imediata, pela habituação a códigos de leitura que não raro, desaguam em paráfrases conceptuais e temáticas. Bom, ao dizer isto, começo a encontrar uma razão para ocupar o tempo desta apresentação que o autor me concedeu. É que, de facto, é muito agradável ver não só enunciado, mas também praticado, um exercício de investigação e de escrita da história poética portuguesa, que não se fique apenas pelas formas mas que efectivamente se esforce por ir nas provas do acontecimento.
O percurso de indagação que o leitor irá percorrer nesta obra, fala-nos da difusão de ideias pela escrita, da resistência pensada da censura dos censores, da mensagem inculcadora dos arengos. Mas também nos convida a prestar atenção ao não dito, à expressão bem pesada dos silenciamentos.
Em toda a poesia aqui reunida por Domingos Lobo, o prazer da transgressão, na plena acepção da palavra, adivinha-se emancipador. O publicismo e o publicista ganham um espaço próprio numa sociedade em que se anteviam iniludíveis rupturas. Contacta-se com uma publicitação de desejos e de actos que irão desagregar uma cultura comunicacional de estatutos sedimentados.
Nos finais do século XVIII e princípios de oitocentos, talvez ainda não fosse tão duro o questionamento subsequente da liberdade versus responsabilidade, mas hoje sabemos muito bem que esses confrontos se apresentam quotidianamente difíceis. Daí que valha a pena ler este livro, onde o conjunto dos sentimentos e da razão latente nas manifestações da oralidade, da escrituralidade e da clandestinidade contribuiu para uma cultura poética associada a um público e aos seus autores.
No fundo, esta “Exaltação do Prazer” é um livro que reúne variantes formas de actuação alternativa, conjugadas numa rede poética, constituída na base de um círculo de tertúlias, gabinetes de leitura, cafés, teatros, botequins, salões, academias, bibliotecas, passeios públicos e outros locais estratégicos, onde convergia a palavra pública, a semipública e a oficiosa. Trata-se, sobretudo, e reinterpretando o conceito de espaço público liberal de Jurgen Habermas, de abrigar a totalidade das manifestações de individuação e de autonomia do sujeito, que, reivindicando a assunção individual no seio do colectivo social, apagavam a tradicional oposição entre cultura de elite e cultura popular.
Em a “Exaltação do Prazer”, o imaginário é uma diagonal da memória que é também transversal da liberdade, um modo de actualizar o passado no presente. É um acto que, no recorrer da história e na linguagem criadora, emerge como função demiúgica que se articula com a necessidade do recurso à “alquimia” da palavra, no sublime ou no belo em que o actor poético surge como a matriz chave do que pretende comunicar.
Cada contexto apresenta formas e ideias expressamente definidas, onde as figuras simbólicas não dispõem de qualquer sentido equívoco, enquanto matéria nobre que conduz ao desenho de íntimas e voluntárias confidências dos autores, onde o corpo da escrituralidade não consegue escapar aos incontornáveis desejos das memórias e onde o platónico se assume, para exprimir o desejo humano de reduzir os limites da condição, onde a intenção erótica é um aspecto capital do estratagema ou da subtileza que o homem pratica para ultrapassar a animalidade.
A procura do prazer é o sinal de um ser desejoso de negar a sua finitude, mas ao mesmo tempo, de afirmar a sua infinita liberdade de sujeito, como eminente criador de valores, fruidor do conseguido acto de pensar como acto de prazer, em que o erotismo, reconhecido como princípio de existência e de inteligibilidade, de vida e de compreensão, denunciava já, como mais tarde, a hipocrisia das sociedades. Neste sentido, o erotismo incarna a subversão que a sociedade de setecentos procurava reprimir. O discurso da sexualidade associa-se a uma hierarquia de pecados, onde habita o furor místico do êxtase, mas também da frustração, a que certamente os censores não seriam alheios, e que, ao escusarem as obras, materializavam de certa forma, penitências autopunitivas.
Objectivamente, a inovação que estas formas poéticas apresentavam, funcionava como uma legitimidade que entrou em rota de colisão com o padrão mental que forrava o pensamento tradicional, introduzindo conscientemente mudanças matizadas e suaves nos vários sectores da sociedade portuguesa. Na verdade, a combinação de todas estas “cantigas”, que falam de religião, de moral, de poesia, de literatura, e sempre de liberdade, fazem crer, a propósito de desejos reformistas, que a dissemelhança entre eles não é assim tão evidente e pode mesmo dizer-se que a semelhança é algo que não é acidental
A selecção feita pelo José Domingos, materializada no “Exaltação do Prazer”, é completamente alheia ao acaso. A linha cronológica da montagem poética é o primeiro indício da não casualidade, mas bem mais a fundo; e aí se destaca o meritório trabalho de estudo do autor; é perceptível que existe toda a intenção de fazer com que o leitor consiga compreender alguns dos objectivos da sociedade de setecentos: provocar e suster o desenvolvimento; a fabricação de estímulos; a introdução de novos métodos; a abertura a novas fontes de pensamento e reflexão. O denominador comum das pretendidas mudanças, em tão díspares conteúdos, era a combinação dinâmica das novidades e das continuidades, do reformismo e do tradicionalismo, por forma a que respondessem a algumas, “miragens”, do pombalismo: alimentar e moderar o incremento do reino e controlar o seu progresso.
É à luz deste entendimento que não pode ser ignorada a intenção do autor de compilar todo este trabalho de acção comunicacional. Consciente das dúvidas e da polémica que possa suscitar, a pesquisa foi encarada apenas como uma tentativa de aproximação a uma realidade, nem sempre visível, que se escapa e sobre a qual unicamente existem dados na literatura de cordel. Neste quadro, o conceito de novelista assenta que nem luva ao José Domingos, pela articulação ímpar que manifesta entre o escrito, entre o alfabeto, o escolarizado e o analfabeto.
Há aqui todo um exame da história do espaço público na sociedade mais liberal que existia naquela época, exame esse que permite, com efeito, notar que a sua primeira etapa é a prática das Luzes, com uma opinião muito própria dos círculos sociais - burgueses desejosos de confrontar as suas opiniões num espaço de mediação entre o Estado e o espaço privado, numa consciência burguesa que, no século XVIII, permite visualizar radicalismo e originalidade no conceito de opinião pública.
A juntar a outros títulos editados já, apresenta-se hoje mais este: “Exaltação do Prazer” – Antologia Poética Portuguesa, Erótica, Burlesca e Satírica do Século XVIII, poemas que, além da indiscutível actualidade, são acompanhados por prefácio e notas imprescindíveis ao prólogo necessário para a compreensão de cada um dos autores, uma contribuição muito válida e que fará, naturalmente, repensar o medíocre fenómeno mediático de hoje.
Sobrevalorizar ou subvalorizar um passado histórico; agasalhar intimamente as suas marcas e sinais; validar, por via da emoção o prazer da memória no seu lugar da história; prazentear as reminiscências e presentear a poética; alimentar e parasitar a lembrança, essa arte da memória, como eficaz metodologia para fecundar o mito e regenerar a sociedade mesmo que, por vezes, com efeitos perversos. Trabalho duro mas proveitoso o do José Domingos. A “Exaltação do Prazer” quebra os cânones do tradicionalismo rapace e corresponde ao que se espera em pleno século XXI.

ET SIC ITUR AD ASTRA – “e assim se chega às alturas”

Pedro